Ontem terminei de ler
mais um texto de Stephen King. Com o passar dos anos, a faculdade de Letras e
os títulos mais clássicos, o mestre do horror foi ficando cada vez mais de lado
na minha lista de leituras, mas de vez em quando, sento e devoro um dos livros
dele, e isso é divertido. O escolhido dessa vez foi Rose Madder, que eu jurava
que nunca tinha lido, mas já tinha. Percebi que era uma releitura no meio do
primeiro capitulo, comecei relembrar algumas partes, mas continuei, por que
desta vez li o livro de uma perspectiva mais, talvez, adulta.
Resolvi escrever esse
post, não para falar sobre Rose Madder, mas para colocar em ordem alguns
pensamentos meus sobre as obras com heroínas de King. Não sei se minha lista
vai ficar completa, mas há alguns destaques entre as personagens de Stephen
King, que me fazem pensar que ele conhece bem o que se passa no interior das
mulheres.
São vários os livros
dele que nos remetem ao mundo feminino.
Em Carrie, (1972) temos como abertura a cena em que Carrie White
menstrua pela primeira vez, aos dezesseis anos. A primeira situação que chama
atenção na cena é a crueldade das outras meninas humilhando Carrie enquanto ela
está desesperada por estar sangrando sem saber por que. King nos dá uma visão
interessante através de Sue Snell. Carrie é uma pária na escola, por conta de
suas próprias atitudes, as roupas que veste, sua aparência em geral. Sue sente
nojo, ódio, pena de Carrie, e por ser adolescente, não consegue lidar bem com
esses sentimentos. É uma das colegas que joga absorventes em Carrie enquanto
ela chora e sangra no banheiro. A crueldade com que as meninas tratam Carrie,
naquele momento para sue, é culpa de Carrie. Até mesmo a responsável pelas
alunas, a professora se ginástica, sente em um primeiro momento vontade de
esbofetear Carrie, por sua estupidez. A senhorita Desjardim consegue se
controlar, mas aquele sentimento de repulsa por Carrie não desaparece
completamente. Todo o texto de Carrie é sobre o universo feminino. E sobre adolescência.
King permeou o texto com histórias e sentimentos de mulheres e os poucos
personagens masculinos são nulos. Enquanto Carrie é uma vitima, Chris Hargensen é a algoz. Uma garota
rica, mimada e popular, que faz de Carrie sua vitima preferida. Stephen King resumiu
nesse livro a clássica disputa da High School americana, entre os populares e
os perdedores. Mas não só isso. Mostrou por que essa rixa existe. Vandalizar
Carrie é defender-se daquilo que Chris não quer ser. É se garantir como a
pessoa de destaque, sem deixar brecha para ninguém mais.
E depois há a criação de Carrie. Ele não teve pai. Foi criada em um
ambiente opressor por uma mãe fanática religiosa com ideias muito estranhas
sobre como as coisas funcionam no mundo. O espaço de Carrie é dividido em dois.
Dois mundos completamente diferentes. Um dominado pela mãe de Carrie, Margaret,
e o outro dominado pela crueldade de crianças que tentam se firmar.
É ainda um mistério Margaret não ter educado Carrie em casa. A menina
sempre cresceu a parte da sociedade, tendo convivência mínima com outras
pessoas que não fosse sua mãe. Ela foi criada para acreditar que o mundo era um
lugar cruel, indecente e pecador. Não é a ideia que Carrie tem do mundo, no
entanto. Ela quer estar nele. Quer fazer parte daquilo que considera natural e
ao mesmo tempo entende que não se encaixa neste mundo. Carrie é a história de
uma garota entrando na adolescência, elevada a quinta potência.
Outro título que fala sobre mulheres é A Incendiária (1980). Firestarter é um livro diferente de tudo o
que King escreveu. E entra em três categorias distintas dos personagens de King.
É um livro sobre mulheres, mas é um livro sobre homens e sobre crianças.
Charlie Mcgee é uma menina. Oito anos de idade. Mas ela já sabe fugir, se
esconder e roubar. A Incendiária é um livro sobre teoria da conspiração. O governo
testou nos pais de Charlie (antes que eles se casassem) uma vacina que deu aos
dois poderes psíquicos. Vicky pode mover pequenos objetos com a mente, e seu
marido, Andy, consegue manipular o pensamento das pessoas para que realizem sua
vontade. Nada absurdamente grande. Só pequenas coisas como fazer um grupo de
mulheres gordas caminharem e esquecerem de comer porcaria. Eles se casam e tem
uma filha, Charlene. O que eles não sabem é que o governo vigia a menina de
perto, já que ela é um efeito colateral do teste que aplicaram nos pais. Vicky
é assassinada quando agentes do governo procuram por Charlie, depois de
perceberem que ela tem poderes pirocinéticos. Charlie pode atear fogo com o
poder da mente. A história é sobre fuga e depois captura de Charlie pelo
governo. E sobre a sua necessidade de controle. Charlie tem um poder muito
maior que o dos pais, e precisa aprender controlá-lo. Mas ela é só uma
garotinha. Quando ela é capturada e separada do pai, aparece um dos personagens
mais intrigantes de Stephen King. Rainbird. Ele é um índio, um assassino, e alguém
em busca de receber uma grande revelação através da morte de outras pessoas. Rainbird
se aproxima de Charlie como se fosse o faxineiro do complexo em que ela está
presa, e eles se tornam parceiros. Existe uma leve sugestão sexual na relação
entre o índio e Charlie. Embora ela só tenha oito anos, e o desejo de Rainbird
seja matá-la, em algumas cenas tem-se a impressão de que ele também está
apaixonado por ela. Ele não vê a criança que Charlie é, mas vê um grande ser de
poder na figura da garota. É uma mistura de desejo, inveja, vingança. O
interessante é observar a diferença entre a Charlie do começo da história e a
menina que consegue explodir todo um complexo do governo e escapar. Charlie é
uma evolução de si mesma, que tem que superar em pouco tempo a morte dos pais e
a ideia de que agora ela é sozinha no mundo, além de controlar sua raiva, para
que não coloque fogo no mundo.
Jogo Perigoso (1992) é um livro totalmente feminino. É a história de uma
mulher algemada em uma cama, sem condições de escapar. As implicações de Jogo Perigoso
são imensas. Primeiramente, Jessie Burlingame está para ser estuprada pelo seu
próprio marido. Depois de aceitar ser algemada na casa do lago do casal, Jessie
decide que não quer mais fazer sexo daquela maneira. O marido - Gerald - aceita
as recusas da esposa como se elas fossem parte do jogo masoquista, Jessie perde
o controle e acerta o marido, gordo, na virilha causando sua morte por ataque cardíaco.
Jessie se vê presa em uma cama, em um lugar ermo, com o marido morto do lado. Esse
livro não tem nada de sobrenatural. É o terror puro de uma mulher que se vê
presa não só fisicamente, mas nas lembranças de sua infância, com uma mãe ciumenta
e cruel por que o marido (pai de Jessie) é atraído sexualmente por ela. A mesma
situação pode ser vista com Bev, em A
Coisa. No caso de Jessie, há a lembrança clara de um dia de eclipse, em que
ela se arrumou especialmente para o pai, que abusa dela enquanto ela observa o
sol se esconder. Essa lembrança enterrada na mente de Jessie vem à tona com
outras, no momento em que ela se vê impossibilitada de sair daquela armadilha.
Jogo Perigoso tem seus elementos de horror mais físicos, como um necrófilo que “visita”
Jessie durante a noite e a observa, ou o cachorro que começa comer partes do
seu marido, depois de passar fome ao ser abandonado pelos donos. Mas Gerald’s
Game não precisava disso. A própria situação de Jessie estar persa com suas
lembranças, algemada e com sede já é o suficiente para abrir espaço para o
medo, pelo menos para mulheres. A história de Jessie é pavorosa por si mesma, e
também um bom exemplo de como as pessoas se adaptam aos traumas para poderem
viver novamente. Aquelas sombras estão sempre lá, e às vezes, elas reaparecem
para assustar, mas na maioria do tempo pode-se guardá-las no fundo da mente,
simplesmente para sobreviver. Jogo Perigoso mostra a mulher criando coragem de
enfrentar todos seus medos e traumas, usando esses sentimentos de raiva,
decepção, medo e nojo para poder superar a situação mais emergencial. Jessie
escapa da cama em que estava presa, mas nunca mais será a mesma mulher.
Dolores Claiborne, com o titulo no Brasil de Eclipse Total (1992) é, sem dúvida, a melhor narrativa de King. Quem
narra a história, em só fôlego, é Dolores, moradora de uma ilha no Maine, que
tem muita história pra contar. Sua patroa, Vera Donavan, morre e deixa pra ela
uma herança. A polícia a interroga sobre a morte da patroa e Dolores desfia a
historia de sua vida para os policiais. Dolores é uma mocinha ingênua, que se
casa com um homem ruim, e desde o começo tem que sustentar a casa e os filhos. Ela
é uma lutadora, que vai trabalhar com Vera e tem que agüentar muitas
humilhações para colocar comida na mesa. Os problemas de Dolores com o marido,
os filhos, a patroa, são imensos, mas pioram muito quando ela finalmente
descobre que o pai de seus filhos vem abusando se sua menina de 15 anos. A história
de Dolores não tem elementos sobrenaturais como outros textos se Stephen King. É
um texto sobre o que uma mãe pode fazer pelos filhos. Eclipse Total foi
dedicado a mãe do autor, e retrata até onde uma mãe pode chegar para proteger
sua prole. A história também retrata como foi a vida de Vera, que perdeu os
filhos em um acidente, e por se sentir extremamente culpada por isso, não
admite que eles estejam mortos. Vera, aos poucos, vai enlouquecendo e Dolores é
a única pessoa que ela aceita que esteja por perto. Dolores convive com a
loucura de Vera, o sofrimento de seus filhos quando crianças, o distanciamento
deles depois de adultos, a própria velhice e além de tudo, tem que lidar com o
fato de que não sente nenhum pingo de culpa por ter assassinado o marido.
O livro que me trouxe aqui, Rose
Madder (1995), conta sobre uma mulher que foge do marido violento. Na primeira
cena, Rosie está sofrendo um aborto, depois de ser espancada. Fazia muitos anos
que uma cena não me fazia passar mal como essa. Ao ler sobre Rosie perdendo o
bebê, minha pressão caiu e fiquei tonta. Depois de vestir minha capa de
indiferença, levei o livro em diante e fui relembrando como era a história da
fuga de Rosie. Depois de ser espancada por 14 anos, de formas horríveis, Rosie
acorda uma manhã e vê uma gota de sangue no seu lado do lençol. Aquela mancha
de sangue desencadeia nela a reação da fuça. Sem ao menos pegar um casaco,
Rosie foge do marido, e vai para outra cidade. Lá começa a se recuperar,
construir uma vida. Mas Norman, o marido, ainda não terminou com ela. Rose
Madder tem umas coisas bem decepcionantes, como o pouco foco em outros
personagens que não sejam Rosie e Norman. Ainda assim, é uma história muito
interessante, em que se pode sentir pena e amor por Rosie, torcer para que ela
seja feliz. E sentir medo por ela, cada vez que Norman consegue mais uma pista
de onde ela pode estar. A superação de Rosie, com a ajuda de um quadro que é
uma janela para outro mundo, é muito bonita de se ver. Um ser amedrontado vai
se revestindo de coragem para dizer nunca mais aos abusos domésticos. A loucura
de Norman, sua obsessão por vingança, a maneira como ele fantasia matar Rosie,
leva o leitor a um clímax quando ele a encontra. A realidade com que King
retrata as violências sofridas por Rosie dá um nó no estomago. Além disso, ao
entrar no mundo do quadro, King dá ao leitor a percepção de coisas muito
maiores que estão para acontecer ao mundo, e que talvez Rosie estivesse
destinada a passar por todo aquele horror para poder fazer parte de algo maior.
Em Rose Madder, a realidade da violência domestica atinge o leitor e pode-se
entender que isso acontece em muitos lares, perto de nós.
Esse post tem por objetivo mostrar um pouco de Stephen King e sua
relação com o universo feminino. Nem todos os livros estão aqui, mas as
histórias aqui retratadas podem mostrar um pouco do conhecimento dele com um
mundo que é tão misterioso para a maioria dos homens, são historias de dores,
traumas e superação, e se king tivesse enveredado por esse lado ao invés de
escrever historias de monstros, talvez fosse um autor um pouco mais respeitado.
Mas, pelo menos, ele tem a nós, os leitores fiéis.