sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Pacto com a fantasia

Eu ando muito viajada com umas coisas que me sugeriram, e acabei percebendo que, muitas vezes, nós só vemos do mundo o que as outras pessoas querem que vejamos e esquecemos de ampliar nossos horizontes até onde só pessoas um pouco mais iluminadas vão.
É interessante perceber, em meio a conversas, como nós mesmos podemos nos limitar e pensar como uma colônia, apesar de sermos chamados de indivíduos.
Cada vez mais, percebo que as coisas individuais são muito raras e que a maioria das pessoas, eu inclusa, estou mais para o senso comum.
Decidi, dentro do meu senso comum, começar pegar coisas que aparentemente são simples, e chegar um pouco mais à fundo nelas. E comecei pensar em como nós entendemos o mundo de maneiras diferentes, dependendo de quem nos fala. Como um texto pode ser tão amoral (terrível, grotesco) e ter todo seu sentido amenizado por um contexto.
Um exemplo simples: um adulto, pingando cloro nos olhos de um animal amarrado pode ser uma cena absurdamente doentia e horrenda, mas, se isso for feito em um laboratório, está ok.
Partindo desse principio, comecei pensar em uma história que assisti, em um seriado muito ruim (que eu guardo para os dias de tédio) em que adolescentes de rua eram sequestrados, tinham seus órgãos e sangue retirados para ser vendidos como potencializadores sexuais e de saúde num mercado bem especifico, e depois eram queimados em fossas mortuárias.
Já li sobre muitas histórias macabras na minha vida, e a maioria é de casos reais, mesmo que sejam transformados depois em ficção. Essa história, particularmente, me lembra muitos dos procedimentos utilizados durante o Holocausto. Existe um grande distanciamento entre as pessoas e o Holocausto, por que o horror desse evento foi tão absurdo que a maioria das pessoas não consegue assimilar tudo o que aconteceu. Apesar da documentação, fotografias e histórias dos aliados e dos sobreviventes, admitir racionalmente o horror desse evento é muito difícil para qualquer pessoa, por que esse ato não foi imposto por um pequeno grupo de membros, mas por toda uma nação. E à uma raça inteira.
Voltando aos adolescentes estripados, assisti ao episódio de Grimm sem nenhuma sensação incômoda. Por quê?
Bom, os seqüestradores/assassinos eram criaturas fantásticas.
Você tem que dar um crédito para criaturas fantásticas.
Inserir termos fantasiosos em uma história dá a ela algumas imunidades. É mais ou menos como no Mundo da Lua, do Lucas Silva e Silva, onde tudo pode acontecer.
A partir do momento em que a ferramenta do fantástico é usado em um texto, ele se torna passível de tudo, qualquer coisa que acontecer no desenrolar da história pode ser considerada comum, já que não há nada de comum na história. Então, assassinos que vendem pedaços humanos e descartam o resto sem nenhum respeito, passam a ser considerados “seguidores de instintos ou de tradições” e deixam de ser o que são, assassinos de crianças. Isso por que o espectador/leitor consegue entender como a mentalidade daquele personagem funciona. O receptor se IDENTIFICA com o assassino, com a desculpa de que ele é um ser fantástico e que aquele comportamento está em seu DNA. (não me surpreende o Holocausto, quando os arianos nazistas simplesmente fizeram o que fizeram tomando a tortura e assassinato como obrigação, se distanciando sentimentalmente daquele ato).
Enfim, achei muito interessante a proposta de Grimm (embora eles não devam saber o que estão fazendo) em colocar situações grotescas em um cotidiano fantástico (não tenho certeza que posso usar as palavras cotidiano e fantástico na mesma frase).
Essa é uma das funções do texto de fantasia: tornar tudo possível. A partir do momento em que o leitor/espectador se vê no meio de um texto fantástico ele perde toda a necessidade de racionalizar as pequenas coisas. Um texto de fantasia é um acordo entre autor e leitor, para que o entendimento possa acontecer. Para que um texto fantástico seja lido, ele não tem que ser, primeiramente, entendido. Tem que ser aceito. O leitor e o texto têm que criar um vinculo, para que as situações que estiverem sendo apresentadas não causem uma estranheza tão grande que o texto não possa ser terminado. Para que um leitor aceite um texto fantasioso, ele deve se despir de todas as suas racionalizações e pragmatismo e tornar real a ideia de que tudo pode acontecer enquanto estiver com aquela obra em mãos.
Talvez seja ai que resida o encantamento dos contos de fadas para crianças. As crianças não têm que fazer um pacto com o texto. Para os pequenos o texto é apenas o que ele é: uma verdade absoluta. O conto de fadas, o texto, é parte da alma infantil, parte de sua imaginação e de sua verdade. O conto de fadas é apenas a materialização em palavras do que a crianças tem como real.
Com o adulto acontece o mesmo, mas como somos “racionais” e “senhores de nós mesmos” precisamos de um pacto para que, quando o livro for fechado, as letrinhas dos créditos subirem, voltemos para a vida real.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Terror cotidiano (Radio Flyer)

Ainda não sei bem sobre o que Radio Flyer é.
Uma história sobre abuso doméstico, sobre sonhos de criança, sobre amor fraterno e de filho para mãe. O que sei é que Radio Flyer é uma história terrível, triste e diabólica. Mas é também uma bela história.
O filme é de 1992, eu tinha 9 anos na época, mais ou menos a idade do ator principal e acho que de todos os filmes que assisti na minha infância, esse foi o mais triste.
É a história de dois irmãos que, juntamente com a mãe e o pastor alemão Shane, se mudam para a Califórnia depois que o pai das crianças os abandona. Eles são unidos, apesar de muito pobres, e com o tempo a mãe conhece e se casa com outro homem, que gosta que os garotos o chamem de Rei.
Rei gosta de beber e espancar o irmão mais novo, Bobby, com um fio de extensão, então os irmãos decidem que Bobby deve fugir antes de ser morto pelo padrasto.
O filme mostra como Bobby e Mike (o irmão mais velho, de talvez 10 anos) escondem da mãe os espancamentos, para que ela se sinta feliz. Também mostra como os meninos ficam brincando o dia todo fora de casa, para evitar a ira do Rei. Uma das particularidades interessantes do filme é a maneira como nós, telespectadores, ficamos tensos quando Rei aparece bebendo. E ouvindo música country. Nós sabemos que alguma coisa vai acontecer com aquelas crianças adoráveis quando chegarem em casa e isso é de tirar o fôlego.
Radio Flyer é mais um daqueles filmes que faz parte da minha infância e esse eu decidi que podia, de bom grado, dividir com meu filho. Hoje ele tem mais ou menos a mesma idade de Mike na história, a mesma idade com que eu vi o filme. E ele teve a mesma reação que eu, ao assistí-lo. Ele ficou aflito.

Acho que essa reação é causada pela impotência que sentimos ao presenciar o abuso que acontece naquela casa, mesmo que as cenas de violência não sejam explícitas. Há uma cena em que Mike sai com outras crianças da rua, uma meia dúzia de moleques, e é espancado por eles, ao mesmo tempo em que Bobby leva uma surra de Rei em casa, a surra que o leva ao hospital. Nós vemos Mike apanhando, mas não vemos Rei bater em Bobby. Mesmo assim nossa preocupação está sempre com Bobby.
No final os meninos constroem um avião com um carrinho de mão, da marca Radio Flyer. E Bobby escapa do padrasto, passando a mandar cartões postais para a mãe e o irmão, enquanto Rei é preso.
Esse post poderia acabar aqui, se não fosse meu amigo @mbrambilla começar discutir esse filme com uma amiga na internet e acabar me mostrando esse post aqui.
Há duas teorias muito interessantes neste filme que com certeza fogem dos olhos de uma criança. O filme é contado por Mike, para os próprios filhos, quando ele já é adulto. Nessa idade, Mike é interpretado por Tom Hanks e ele diz para seus dois filhos que a história está na cabeça de quem conta e que ele gosta de lembrar-se de Bobby assim. Uma das teorias que apareceu por ai é que Bobby seria uma invenção da imaginação de Mike para fugir dos terrores que aconteciam com ele nas mãos de Rei. Sustentam essa teoria falando que a interação de Bobby com os outros personagens é mínima. Não consigo acreditar nisso. Mike e Bobby são reais, no meu ponto de vista. Os dois participam da história na mesma proporção.
A outra possibilidade, pra mim muito mais real (e que me deu um choque) é que Bobby morreu durante a infância. Aí existe a possibilidade de ele ter morrido durante a fuga, ou de ter sido pelas mãos de Rei. Acredito na segunda hipótese. Acredito que a surra que levou Bobby para o hospital o matou e que a maneira como Mike lidou com isso foi inventando para si mesmo a história do avião, e da viagem, a mesma história que ele passou para os filhos. Mike se sentia responsável pelo irmão mais novo e quando ele se foi, teve que arrumar um jeito de manter a promessa que tinha feito para si mesmo de cuidar do garoto.
No final das contas, a história que me deixou triste na infância só fica mais trágica.
Finalmente queria deixar claro que o que também me incomodou no filme foi o padrasto batendo no cachorro. Não se bate em cachorros, peloamordedeus. O bicho era maravilhoso, corajoso, fofo e companheiro. Fiquei chocada.
E mais uma coisa. Esse foi o filme que me fez descobrir minha primeira paixonite. Sim, eu amei o Elijah Wood por uns bons anos da minha vida, com aquela carinha de anjo e os olhos azuis. Fio um romance longo, desde Radio Flyer e Anjo Malvado até Impacto Profundo. Mas quando ele interpretou o Frodo, com certeza isso acabou para sempre...aquela barriguinha.
E por último os sete segredos mágicos de fascinações e habilidades que as crianças conhecem, mas esquecem lá pelos 12 ou 13 anos:
    Os animais podem falar.
    Seu cobertor favorito tem um tecido de uma fábrica tão poderosa que, quando colocado sobre a cabeça, se torna um impenetrável campo de força.
    Nada é pesado para se levantar, com a ajuda de uma capa.
    Sua mão possui no dedão uma verdadeira arma de fogo.
    Pular de qualquer altura com um guarda-chuva é completamente seguro.
    Monstros existem, podem ser vistos e você pode enfrentá-los com eles.
    Você tem a habilidade de voar.